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Afinal, é assim tão mau vender livros em supermercados?

Nos dias que correm, e apesar de algo evidente, talvez não seja certo coibir-me de dizer que não sou perita do mercado livreiro e editorial em Portugal. E que esta é uma mera opinião de uma leitora que compra livros em grandes grupos e em pequenos nichos, online e em livrarias físicas, que requisita à biblioteca (a mais do que uma, na verdade), que doa, empresta e principalmente, que passa largas horas semanais a pesquisar sobre livros e a ler sobre o que se passa no mercado nacional e estrangeiro, e a recolher opiniões de quem efectivamente está dotado para tal. 
 

 Bem essencial vs Bem Não Essencial

Este é sem dúvida um tempo estranho para se viver, e principalmente um estrangulamento ao mercado livreiro, causado pela já nossa tão conhecida pandemia causada pelo SARS-COV2. É natural e premente que os vários actores deste universo se manifestem e defendam um negócio que não entrará em vias de extinção mas se tornará, por força das medidas tomadas, mais restritivo, menos diversificado e possivelmente, menos instigador ao espírito crítico. 

Não me cabe aqui dizer se as medidas de encerramento das livrarias fazem ou não sentido. O equilíbrio de saúde-economia é um quebra-cabeças que não quereria sobre os meus ombros, e obviamente, por força de necessidade, todos os sectores e actividades do mercado têm de defender a sua subsistência. Certamente ouviram nas últimas semanas a Associação Nacional de Cabeleireiros a pedir a sua abertura, os ginásios idem, as livrarias, claro que sim, e os restaurantes?  

O que é certo é que as livrarias, per si, não trazem enchentes e que não seriam per si um factor de risco acrescido. E que, aliás, em países como França, Itália e Bélgica os livros foram considerados bens essenciais, permitindo o real funcionamento de livrarias durante os períodos de confinamento obrigatório. Não vou retirar daqui ilações sobre as considerações que são feitas a nível governamental sobre o sector, limitando-me a reforçar que os livros, para além de um enorme factor de distracção e alívio do stress, são instigadores do pensamento crítico, da empatia, e de um nível de alfabetismo funcional mais elevado que poderá contribuir para combater o flagelo das fake news. Para além de facilitar agilidade mental, e contribuir para cultura geral e ganho de vocábulo. Sabe-se hoje que alguns soldados da I Guerra Mundial tinham à sua disposição livros em acampamentos e hospitais, precisamente para combater os níveis de stress (alguns com Stress Pós- Traumático) causados pelo conflito (Jane Austen e Shakespeare estavam entre os autores à disposição).

É claro que nem toda a população portuguesa é leitora (de livros, pelo menos), e que muitos podem alegar que a abertura das livrarias seria dar primazia a um nicho. Sabendo que o nível de literacia em Portugal não é muito elevado, e que não se compram/lêem tantos livros como o desejado (deixo hábitos de promoção para outro artigo), acho saudável admitir que vai sempre haver uma percentagem da população que não lê, não leu, nem lerá. E que os seus hábitos de descompressão e alívio do stress serão outros (embora o próprio desporto e os canais de transmissão em streaming, seja de produção cinematográfica ou videojogos, podem ter as sua limitações pelas restrições de velocidade da banda larga.Ou que até os fornos têm limite para o número de bolos com que vão popular as cozinhas portuguesas). 
 
E está tudo bem. Mas há também de reconhecer que dentro desse grupo há os que não o fazem por falta de hábito e não por aversão ao acto de leitura, e que poderão encontrar nestes momentos de pausa  uma oportunidade de adoptar um hábito diferente num período em que estamos mais fechados e em que muitas pessoas estão sozinhas (falo neles, mas objectivamente, em nenhum dos confinamentos detectei essa existência do "mais tempo para ler"). 
 
Livrarias: abertas ou fechadas?
 
E é aqui que chegamos às livrarias abertas ou fechadas. Quando saiu o decreto-lei que proibia a venda de livros nos supermercados a partir de 18 de janeiro, após terem sido proibidas as vendas ou levantamentos de artigos ao postigo, para qualquer bem não alimentar, eu concordei. 
 
As livrarias independentes vêem-se já sujeitas a uma enorme pressão e vivem essencialmente da proximidade. Com os confinamentos, muitas tiveram de se reinventar, criar sites para poderem vender ou dar a conhecer sugestões, fazer entregas gratuitas ao domicílio (atendendo a que o valor do livro que lhes reporta é de 30% do valor de venda, com custos de entrega e empacotamento, muitas estão a trabalhar para manterem clientes e com muito pouca subsistência). Mas perde-se o elemento de navegação fora do mainstream, e o processo de curadoria fica meio que omisso. O próprio elemento de ligação, que passa precisamente pelo prazer de troca de dois dedos de conversa, descoberta de livros novos, reconhecimento do gosto do leitor e atribuição de confiança às sugestões do/a livreiro/a como as que mais se adequam à nossa pessoa, ficam agora deturpadas pela necessidade acrescida de dar conta às despesas e de procurar soluções atrás de soluções para não perderem os negócios. E de empacotar, empacotar, empacotar. Uma linha de montagem única em que as pequenas livrarias são representativas dos sete ofícios, sem obterem as vantagens de uma cadeia de "produção" oleada dos grandes grupos distribuidores. 
 
Nesse sentido, concordei e concordo que seria concorrência desleal permitir a venda dos livros nos supermercados, quiosques de revistas, CTT e etc., e manter as livrarias fechadas. Não só para as livrarias como para o próprio mercado livreiro. Afinal, a oferta nesses locais é limitada, não só em volume como pela tipologia de oferta (focada mais em best-sellers), tornando a própria distribuição mais pobre. Não falo em best-sellers como sinónimo de baixa qualidade, porque muitos deles não o são. Mas é inevitável evidenciar que nem todos os leitores lêem os mesmos géneros e que a oferta destes locais tende para um nicho do público leitor que não se reflecte na maioria. 
 
No entanto, e após ver um post da Nota Terapia quis fazer o exercício de verificar quantas livrarias existem em Portugal. Para tal, socorri-me do site da Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e da Bibliotecas. Lá, podem consultar bases de dados que vos indicam a distribuição de livrarias, mas também de bibliotecas no território nacional. Essa informação resulta de recolha que é feita junto das entidades do mercado livreiro pela Direção-Geral através de inquérito, pelo que toda a informação respondida é da responsabilidade das livrarias. No entanto, o site informa de que o último inquérito foi realizado em 2017, pelo que o mercado certamente já sofreu várias alterações. Do que pude pesquisar, era no entanto o único sistema mais completo para proceder a esta análise.
 
Gostava de a ter realizado concelho a concelho (deixo a sugestão de permitirem fazer o download da base de dados para excel no futuro), mas o tipo de navegação no site não o permite de forma rápida, pelo que optei por analisar a distribuição de livrarias por distrito e ilhas.



E assim se percebe que há locais do país que quase não têm livrarias (atenção que optei por contabilizar a totalidade das apresentadas na base de dados, e que incluía as várias tipologias, o que agrava mais o problema: alfarrabista, artes gráficas, banda desenhada, cinematografia, generalista, infanto-juvenil, itinerante, jurídica, livraria-papelaria, livraria-café, livros de viagem, municipal, olisipografia e cultura portuguesa, poesia, religiosa, revistas, técnica). Locais em que são estes postos secundários de venda que permitem dar um acesso mínimo ao livro. É que uma coisa é termos opções de compra e de acesso ao mercado livre, e outra completamente diferente é termos o acesso negado por inexistência de espaços. 

Se é de alguma forma esperado que nesses locais menos servidos o nível de procura pelo digital seja mais elevado, precisamente pela inexistência em proximidade, não é e continuará a não ser certo que essa procura se estenderá a toda a população e portanto, fechar os corredores do supermercado e da papelaria só estrangulam ainda mais o sector já estrangulado. 

Deste modo, acho que poderemos concordar que é uma concorrência desleal, e será sempre enquanto as pequenas livrarias continuarem fechadas (até porque os seus problemas não desaparecem), mas é um "mal necessário" para que o sistema não se vá denegrindo (ainda mais) em sistema dominó. 

Tive oportunidade de passar por um supermercado depois da reintegração do direito de venda de livros em espaços já abertos com outra finalidade comercial, e vi um interesse redobrado pela área da livraria, como só costumo ver em época de promoções e descontos. Claro que é o efeito libertador do desconfinamento do objecto, e que irá acalmar brevemente, mas  permite alimentar o dinamismo das vendas (bem necessário). 

As livrarias independentes 
 
Compreendo e acho perfeitamente normal a revolta subsequente das livrarias independentes, as únicas que se dedicam exclusivamente a uma tipologia de negócio e se vêem obrigadas a fechar para deixar que outros vendam o que elas só conseguem ir tentando fazer online. A ironia seria cómica se não fosse só mordaz. Do meu ponto de vista, acho ainda mais atroz do que a venda em papelarias e nos postos CTT, a venda que é agora perpetuada em espaços com uma enorme oferta de livros, que são quase livrarias, mas que lá porque disponibilizam outros bens (seja equipamento informático, seja material de papelaria ou revistas e jornais) já podem ter o negócio em pleno funcionamento. Não me cabe na cabeça que uma livraria que venda meia dúzia de revistas agora possa abrir em pleno como se essa fosse a sua actividade principal, enquanto a do lado não possa porque venda só livros. 
 
Diria que são estes pequenos duelos de sobrevivência que ainda fragilizam mais o sector e que vão ditando a sentença de morte a muitos espaços que, quando puderem abrir, talvez já não atraiam a clientela de antes, que se mudou para onde podia.
 
E as livrarias independentes são importantes. Num próximo artigo irei aprofundar o assunto, mas mais não seja, oferecem uma oferta mais variada. Permitem repor livros no imaginário de quem compra, e dão acesso a livros que não são sempre novidades. 
Trazem diversidade, pelas temáticas e pelos autores seleccionados, pelas editoras a que dão destaque e pelos assuntos aos quais preferem dar relevância. Para além de relembrarem a existência de um mercado mais abrangente, tornando o negócio da venda de livros não somente um negócio, mas um clube de torcida em que enquanto clientes, sentimo-nos parte do sistema e não somente depositários/as de dinheiro.
 
Enquanto pessoas que se cultivam e procuram manter-se informadas e conscientes, é bastante evidente que uma oferta menos plural gera pobreza de pensamento.
 
 
Os compradores

Por outro lado, parece-me que é também evidente que da mesma forma que os públicos-alvo de leitores se vão dividindo por temáticas e estilos, também os locais em que se movimentam para comprar livros são diferenciados. 
 
Até porque, querendo olhar bem para o mercado, tenho algumas dúvidas de que os compradores que tipicamente preferem uma livraria se debandem todos para os supermercados (se nunca os viram como locais de oferta, possivelmente para muitos assim se manterá, tentando arranjar alternativas de contacto com os seus livreiros/livreiras preferidos/as). Agora: se uma grande livraria abre portas e os leitores que preferem esses espaços podem lá deslocar-se e comprar, a opção de manter as restantes fechadas é somente hipócrita, para além de decretar que quando o inquérito da DGLAB for actualizado para 2021, o cenário reproduzido neste mapa seja muito menos pontilhado. 

Nesse sentido, apoiem da forma que puderem as livrarias mais pequenas. Descubram o site da RELI - Rede de Livrarias Independentes e procurem livrarias que vos interessam, por proximidade e interesse em ajudar a economia local, ou porque apresentam uma curadoria a não esquecer. 

Posso dizer-vos que este ano (acho que já podemos considerá-lo um ano) de confinamento alternado me deu oportunidade de explorar mais o sector e descobrir livrarias que vale a pena seguir. A Culsete (Setúbal) que recomenda livros de nicho ou uma selecção muito privilegiada, a Tinta nos Nervos (Lisboa) que se preocupa com as ilustrações e a arte dos livros enquanto canal primordial de comunicação, a Hipopótamos na Lua (Sintra) que tem uma oferta infanto-juvenil que tanto dá para as maiores procuras como para as gemas que só um olhar conhecedor sabe trazer ao de cima. Estes são três pequenos exemplos, mas posso falar-vos de muitas mais. Tenho feito o possível para apoiar o sector, e vocês também o podem fazer. 
 
Portanto,  comprem livros. Onde puderem, e como quiserem. Mas tentem também apoiar o mercado independente. Porque nisto, ou estamos todos juntos, ou qualquer dia só teremos os supermercados.

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Cláudia
Sobre a autora:
 
Maratonista de bibliotecas, a Cláudia lê nos transportes públicos enquanto observa o Mundo pelo canto do olho. Defensora da sustentabilidade e do voluntariado, é tão fácil encontrá-la envolvida num novo projeto como a tagarelar sobre tudo e mais alguma coisa. É uma sonhadora e gosta de boas histórias, procurando-as em cada experiência que vive.

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